quinta-feira, 28 de julho de 2011

Alimentos seguros, apesar dos riscos


Uma conversa informal em uma roda de amigos sobre os riscos que corremos no dia a dia pode levar alguns ao pânico. A percepção comum é que os riscos cresceram e nos ameaçam por todo lado. O primeiro lembra que nas ruas somos vítimas potenciais de todo tipo de criminoso, assaltantes e motoristas que no Brasil têm licença para ferir e matar quase impunente. Outro comenta sobre as enfermidades, que “nos rondam como nunca”: o câncer mata cada vez mais, novas doenças são detectadas e vivemos quase sempre ameaçados por uma epidemia em potencial. “Em breve, faltarão animais e continentes para denominar as gripes,” concluiu preocupado e com exagero outro participante da roda. “Comer, então, está ficando cada vez mais dificil,” arremata uma mãe de crianças pequenas que seguia com interesse a conversa. “Ninguém sabe o que tem nos alimentos que somos obrigados a consumir; basta ler os rótulos, só tem produto químico, e a coisa mais difícil de encontrar é alimento conhecido. Está pior que bula de antidepressivo.” Um dos amigos argumenta que não é bem assim, que “nossa percepção de risco é falsa até porque não temos informações suficientes para estimar a probabilidade de sermos assaltados, atropelados ou envenenados por um pepino contaminado.”
A psicologia comportamental comprova que somos impressionáveis com facilidade por eventos recentes, ainda que não tenham fundamento objetivo. “Depois do que ocorreu no Japão, deve ter gente aqui no Brasil pulando da cama ao menor ruído, com medo de terremoto.” Não convence os demais, que insistem na tese de que viver é cada vez mais arriscado, e deixa a conversa jogando aos amigos o paradoxo: “então, como se explica que hoje vivemos muito mais e que, daqui a pouco, apesar de tudo, o mundo terá 8 bilhões de pessoas e que em alguns países a expectativa de vida chegará logo logo aos 90 anos? É porque embora o risco e a ameaça sejam reais, as ocorrências que alimentam nossa percepção são muito menores do que imaginamos.”
A conversa hipotética dos leigos se aplica perfeitamente ao tema da segurança dos alimentos, que voltou ao noticiário com a contaminação provocada por “inofensivos” brotos de feijão orgânico, que na visão comum (muito difundida pelos grupos que se opõem ao agronegócio) são saudáveis quase por definição, por que são naturais e produzidos sem a intervenção de agrotóxicos, como são denominados de forma genérica e incorreta todos os insumos químicos utilizados na agricultura. Não se trata de minimizar a ameaça e os danos provocados por uma nova linhagem da bactéria Escherichia coli, altamente infecciosa e tóxica, com genes que lhe dão resistência a alguns tipos de antibióticos: foram 41 mortes oficiais e quase 4 mil pessoas infectadas, apenas na Alemanha, das quais muitas sofrerão consequências por toda a vida.
Mas o estrago não se resume aos mortos e feridos. As consequências econômicas não são pequenas, e dificilmente serão dimensionadas. Em um primeiro momento, a contaminação foi atribuída a pepinos importados da Espanha, o que obrigou os agricultores espanhóis a descartar toda a produção que absorveu semanas de trabalho e de recursos. Posteriormente, as autoridades sanitárias da Alemanha descobriram a bactéria E.coli em folhas de alface, em uma área da região de Fürth, na Baviera, no Sudeste do país, e finalmente chegaram ao verdadeiro vilão: o broto de feijão. O fato é que, embora o foco tenha sido localizado, a percepção de risco de contaminação se espalhou rapidamente por toda a União Europeia, o segundo maior mercado de frutas, legumes e verduras frescas. Da noite para o dia, o saudável virou possível veneno, as feiras se esvaziaram e as mercadorias sobraram nas gôndolas dos supermercados e nas cada vez mais populares lojas de produtos naturais. Fossem esses produtos comercializados em bolsas, a queda teria sido maior do que a quebra da bolsa de Nova York em 1929. Qual o custo desta paralisação ninguém sabe.
Tivesse ocorrido aqui no Brasil, onde ainda engatinhamos no trato da questão sanitária, seria fácil responsabilizar o “descaso” das autoridades responsáveis, a “ganância” de produtores sem compromisso social, o “agronegócio” e até a “ignorância” do consumidor, que não se preocupa com a qualidade e olha apenas o preço. O problema é que ocorreu na Alemanha, país onde se supõe que as instituições funcionem quase como um relógio suíço. Independentemente da eventual responsabilidade do relojoeiro, isto sugere, de um lado, a enorme dificuldade de controlar e garantir a segurança dos alimentos em um nível que elimine os riscos, e de outro, uma possível falha na própria engrenagem do seu sistema de segurança.
A sucessiva ocorrência de episódios sanitários negativos desde o final da década de 1990, em particular alimentos contaminados – metanol no vinho, salmonela em ovos, chumbo no leite em pó, benzeno em água mineral, dioxina em frangos (gripe aviária), uso ilegal de hormônios na produção de carne bovina e de insumos que afetam a qualidade do produto final, como o uso de rações que levaram à doença da vaca louca –, que tiveram ampla repercussão na imprensa mundial, contribuíram tanto para difundir uma onda de insegurança e de questionamentos sobre a qualidade dos alimentos, como para elevar o nível de preocupação e alerta em relação à qualidade sanitária dos produtos. O conceito de segurança dos alimentos, até então restrito ao ambiente de tecnólogos, transbordou para a sociedade e desde então vem sendo objeto de políticas e regulamentações, nos âmbitos internacional e nacional. Outro subproduto dessas crises foi a mudança na própria percepção dos consumidores sobre a segurança dos alimentos, com a valorização do “natural” e o questionamento do “processado”, o primeiro tido como automaticamente saudável e o segundo como perigoso.
Ambos os juízos são falsos no contexto da vida moderna. O risco envolvido em comer sashimi preparado com peixe fresco em uma vila de pescadores é muito diferente do risco de degustá-lo em um restaurante em Campinas, preparado com um “peixe fresco“, produzido sem hormônios, mas que fez uma pequena viagem de centenas ou milhares de quilômetros para chegar ao mercado local. Do outro lado, não se pode desconhecer que o processamento e a industrialização dos alimentos contribuíram para eliminar e ou reduzir muito os riscos de contaminação alimentar e foram decisivos para a evolução da humanidade.
A insegurança provocada pela contaminação de alimentos deságua em pressões sociais que se traduzem na formalização de uma institucionalidade complexa, que regula todo o processo de produção dos alimentos, com a introdução de mecanismos de identificação e rastreabilidade, segregação de produtos, certificação e padronização, e que tem custos elevados para toda a sociedade sem necessariamente aportar benefícios adicionais. O padrão é conhecido: as ocorrências, independentemente de uma avaliação objetiva do risco real, são respondidas com novas regras, proibições, indicadores e padrões. E na dinâmica social das sociedades democráticas contemporâneas estas regras são para valer, criam direitos e deveres, ônus e benefícios, em torno dos quais se organizam e se degladiam (e desorganizam) grupos políticos e sociais com distintas visões do mundo.
A União Europeia tem sido campeã nesta área. Ao longo dos anos 1990, criou extensa legislação que regula cada detalhe da produção e comercialização de produtos alimentares: introduziu normas e mecanismos de controles por meio de medidas para melhorar as condições de saúde pública e de higiene dos alimentos; normas sobre rotulagem; regras sobre sanidade animal e vegetal; regras para o bem-estar animal; controle dos resíduos de pesticidas e agrotóxicos, bem como aditivos na alimentação; e informação nutricional aos consumidores, entre outras medidas. Nada disto impediu a crise da vaca louca, que já revelava a impossibilidade de garantir a segurança dos alimentos por meio apenas de imposições de regras sobre um processo produtivo que não para de se transformar sob impulso da concorrência e da inovação tecnológica. A aplicação dura do princípio da precaução, além de não ser suficiente para eliminar os riscos, em muitos casos tem apenas o efeito negativo de atrasar e encarecer inovações que atendem a demanda da sociedade.
Foi neste contexto que a UE assumiu o princípio, correto, de que a segurança dos alimentos deve ser permanentemente monitorada, o que exige a introdução de mecanismos da rastreabilidade ao longo de toda a cadeia de forma a permitir tanto a pronta identificação de problemas como a ágil mobilização para retirar os lotes afetados do mercado. É difícil apontar onde falhou o controle de qualidade do processo de produção que resultou na contaminação dos brotos de feijão; o episódio mostra, mais uma vez, a quase impossibilidade de garantir que alimentos contaminados não cheguem aos mercados. O que sim falhou de forma clara foram os mecanismos de detectação da ameaça e de intervenção para controlar os danos. Foram quase duas semanas para chegar ao broto de feijão, que continuou no mercado enquanto o inocente pepino era crucificado. É esta a maior fragilidade do sistema de segurança alimentar atual: detecção de ameaças e controle realista de risco e capacidade para reduzir os danos. É nesta área que temos que investir mais, inclusive em formação, em pesquisa e desenvolvimento e em infraestrutura de tecnologia industrial básica necessária.
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Antonio Marcio Buainain é professor livre docente do Instituto de Economia (IE) da Unicamp e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (INCT/PPED)
Adriana Carvalho Pinto Vieira é pós-doutoranda do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (INCT/PPED)


Postado por Jéssica Sobreira.

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