quinta-feira, 28 de julho de 2011

O lazer é um direito social no Brasil?

(Pesquisadora analisa documentos que resultaram na promulgação da Constituição de 1988)


O lazer é um direito social no Brasil?
Pesquisadora analisa documentos que resultaram
na promulgação da Constituição de 1988

O lazer como direito social foi incluído em uma Constituição pela primeira vez no Brasil em 1988, durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, iniciados em 1987. Um estudo de mestrado da Faculdade de Educação Física (FEF) de autoria de Flávia da Cruz Santos pôs em dúvida o fato de o lazer ter se constituído direito social no Brasil, já que muitos estudos indicam que ele ocupava na nação um lugar secundário. “Era encarado como supérfluo e não era tido como uma necessidade das classes populares”, garante a pesquisadora. Mas bem ao contrário do que ela achava, a pesquisa indicou que não se tratou de uma contradição, posto que o lazer foi reivindicado como um direito durante os trabalhos da Constituinte pelos três atores políticos participantes desse processo: os constituintes, as entidades da sociedade civil e a população.
Agora, como algo que era tido como “tão supérfluo e desnecessário” foi entendido como direito social? A pesquisadora descobriu que a contradição foi apenas aparente. “Na verdade, ela não existiu. O lazer foi reivindicado, e algumas expressões utilizadas nos textos das sugestões e emendas salientaram claramente isso: ele foi requerido como ‘direito fundamental’ e como ‘necessidade básica dos cidadãos’”. Então esta forma de compreender o lazer como direito e como necessidade básica indica que ele ocupava um lugar destacado na sociedade brasileira daquele momento histórico.
O assunto se tornou alvo de atenção de Flávia Santos, que quis compreender melhor o que começou a incomodá-la quando estudava as políticas públicas de lazer e de esporte. Foi aos documentos produzidos pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 e reconstituiu as presenças e ausências do lazer nesse processo. Este trabalho de mestrado, que teve orientação da professora da FEF Silvia Amaral, buscou reconstituir a trajetória do lazer na Constituinte, que foi instalada no dia 1º de fevereiro de 1987 e dissolvida no ato da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
A Constituição de 1988 resultou de reivindicações da sociedade brasileira que vinham desde a década de 1970, pois a última Carta, que ainda vigia naquele momento, datava de 1967, construída no e pelo governo Castello Branco, no início da ditadura militar. Deste modo, considera a pesquisadora, era uma Constituição que representava os valores e ideais do regime autoritário.
“As ausências revelaram muito nessa pesquisa”, situa ela, que percorreu a trilha completa dos documentos produzidos pela Constituinte, que hoje estão sob a guarda do Senado e da Câmara e foram disponibilizados on-line. Além deles, a pesquisadora analisou os documentos que os antecederam, sempre da década de 1980, que tratam da construção da Constituinte: mensagem do presidente José Sarney que propõe a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, emenda Constitucional que a convocou e o seu Regimento Interno.
A professora de Educação Física contou, além do mais, com uma fonte oral – a entrevista realizada com José Maurício Linhares Barreto (do PDT), que foi o constituinte que mais enviou emendas e sugestões versando sobre o lazer, depois do sociólogo Florestan Fernandes, deputado pelo PT falecido em 1995. As sugestões populares foram enviadas via correio através de formulário apropriado, que também puderam ser encaminhadas através das entidades e dos constituintes.
A ausência de uma definição precisa do lazer na Constituição de 1988 é um problema na opinião de Flávia Santos. Está mal-definido constitucionalmente. Figura no artigo 6º como direito social, ao lado dos direitos à saúde, à educação e à moradia, mas não foram definidos os princípios, as diretrizes, os objetivos, os mecanismos e as regras institucionais que deveriam orientar a concretização do direito ao lazer, assim como sua fonte de financiamento.
Alguns constituintes (entre eles José Maurício e Caio Pompeu de Toledo), descobriu a pesquisadora, reivindicaram financiamento para o lazer em emendas. O que indica essa presença na Constituinte seguida de ausência na Constituição? Flávia dá sua explicação. “Significa que esses constituintes queriam não somente incluir o lazer como um direito no texto da lei. Desejavam garantir que ele fosse materializado na vida das pessoas, pois, afinal, como garantir um direito, como dar a ele concretude, se não houver financiamento para ele? É impossível”, argumenta. “Então essa não foi uma reivindicação retórica”, conclui.
Depois isso não ganhou sustentação, avalia a pós-graduanda, porque o jogo político dentro da Assembleia Nacional Constituinte ‘ia e vinha’. Ora os constituintes ganhavam e ora perdiam nas votações. Tratava-se de um jogo de pressões em que se observavam ausências e presenças – muitas vezes presenças como essas, seguidas de ausências, ou ausências, seguidas de presença. O jogo, portanto, tornava-se nebuloso. A pesquisa mostrou que o que era previsto pelo Regimento Interno da Constituinte, as etapas e quem deveria participar de cada uma delas, nem sempre era seguido. “Descobri muitos documentos e fases dos trabalhos que não estavam previstos. Eles não deviam existir, o que evidencia que a dinâmica de funcionamento da Constituinte ainda guarda mistérios”, comenta.
A autora desmistificou a ideia de que o lazer era tido apenas como uma forma de controlar a classe trabalhadora. “Não houve essa evidência da vinculação de interesses político ideológicos nas reivindicações em torno do lazer nesse trabalho”, frisa a pesquisadora. O estudo até revelou partidos políticos, de posições sobremodo divergentes naquele momento, que reivindicaram o lazer. Foram eles PT, PMDB, PCB, PDT, PFL, PL, PDS e PDC.
Outra sua constatação foi que existiram muitas maneiras de compreender o lazer na Assembleia Nacional Constituinte. Ele foi entendido como uma simples atividade, e também, de modo mais complexo, como um fenômeno social e uma ferramenta educacional relevante. Ao mesmo tempo em que ele era entendido como atividade, era entendido como uma necessidade básica e como um direito fundamental dos cidadãos. Um direito fundamental indica o mínimo necessário para que o cidadão tenha uma vida digna.
A pós-graduanda relata que a compreensão de lazer mais complexa não foi apresentada pela população, nem pelas entidades. Foi apresentada pelos constituintes. Segundo ela, Florestan Fernandes enviou uma sugestão muito significativa, com dez artigos, todos versando sobre o lazer. Ele compreendeu o assunto de modo abrangente, como intelectual que era.
A primeira emenda que incluiu explicitamente o lazer como direito social no processo Constituinte foi a 2P02038-1, uma emenda coletiva assinada por 291 constituintes. Seu texto é idêntico ao texto do artigo 6º da Constituição promulgada que define os direitos sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, o amparo à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados na forma dessa Constituição”. Atualmente, esse artigo teve um acréscimo – a moradia.
Entrevista
José Maurício contou que o que o levou a reivindicar o lazer como direito de todos os brasileiros foi a sua história como político, muito próxima das camadas populares no Rio de Janeiro, Estado onde vivia e foi eleito deputado federal. Foi nesse contato que percebeu que as pessoas precisavam, necessitavam e queriam ter lazer. Foi a partir do seu próprio olhar que realizou essas propostas, uma ‘iniciativa pessoal’, e ele não consultou as sugestões populares enviadas.
A pesquisadora recorda que a Constituição de 1988 foi conhecida como a “Constituição Cidadã”. Contudo, ao analisar os documentos, encontrou vários indícios e vestígios históricos de que as sugestões populares não foram consultadas pelos constituintes. “A população não foi de fato ouvida nesse processo, como se diz que ela foi.”
Na entrevista de José Maurício, ele informou que muitas emendas eram ‘emendas de corredor’. Fazia-se uma emenda e contratava-se um funcionário para ficar no corredor da Câmara coletando assinaturas dos constituintes. “Ele contou que essa emenda foi ‘de corredor’, subscrita por 291 constituintes.”
No entender de Flávia Santos, o processo Constituinte e a inclusão do lazer na Constituição de 1988 ainda permanecem desconhecidos e merecem ser pesquisados. Seu estudo não se pretende conclusivo. “Essa foi a primeira pesquisa a investigar a construção histórica do lazer como direito social no Brasil, os atores políticos e os interesses envolvidos, despertando muitas outras possibilidades de estudo, de histórias a serem contadas”, expõe.
A pós-graduanda cursou algumas disciplinas no Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e na Faculdade de Educação (FE). Tal trabalho exigiu até 14 horas diárias de análise documental. De acordo com a sua autora, alguns documentos chegavam a reunir mais de 900 páginas. Acontece ainda que cada um deles somava de dois a quatro volumes, em razão da dinâmica imprimida pela Constituinte, que envolveu várias etapas e fases.
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■ Publicação
Dissertação: “Procurando o lazer na Constituinte: sua inclusão como direito social na Constituição de 1988”
Autora: Flávia da Cruz Santos
Orientadora: Silvia Cristina Franco Amaral
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)
Financiamento: CNPq

Postado por Jéssica Sobreira.

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